Um mundo ferido, nascido do vento

EAMI

Tem um dedo brasileiro (ou melhor, dez dedos) no filme vencedor do Festival de Roterdã que terminou ontem (6/2). EAMI, da paraguaia Paz Encina, tem montagem assinada por Jordana Berg. Foi um trabalho de alta costura estruturar a mitopoética de uma tribo indígena invadida pelos brancos a partir do olhar ficcional de uma menina de cinco anos e das memórias documentais de pessoas mais velhas. Veja o depoimento de Jordana no final da matéria.

A pequena Eami (Anel Picanerai) carrega um nome que também significa “monte” (onde habita seu povo) e “mundo”. Ela sobrevive à invasão dos coñones (“insensíveis”) e sai pela floresta à procura de dois amiguinhos – sem os quais, afirma, não saberia viver. Eami tem também uma dimensão mitológica. Encarna o pássaro-mulher Asojá, uma divindade criadora do mundo para os Ayoreo Totobiegosode, uma das comunidades mais isoladas do Chaco paraguaio.

Como em seus filmes anteriores, o prestigiado Hamaca Paraguaya e o documentário Exercícios de Memória, Paz Encina tece uma intrincada rede de tempos e pontos de vista em EAMI para fornecer uma percepção pretensamente mais próxima da cosmogonia indígena do que da nossa. Daí que os tempos se mesclem, as vozes se cruzem e a narrativa se espalhe entre vários enunciados.

Ora ouvimos as falas de Eami criança, ora de sua versão adulta. Chegam também os relatos em off de possíveis testemunhas reais dos fatos narrados: a entrada dos brancos, a captura dos indígenas, a imposição de roupas e comidas, a transmissão de doenças. Nada disso, porém, é explicitado em imagens de ilustração. Os coñones, chefiados por uma mulher, são apenas entrevistos e distantes de qualquer ação. Paz Encina parece abdicar do papel de narradora onisciente para tentar simular a apreensão indígena das coisas.

As palavras parecem brotar pausadamente da memória de personagens posicionados em closes frontais, de olhos fechados ou de costas. O ritmo é lento e hipnótico, já a partir do plano inicial que dura oito minutos. As imagens do Chaco, sempre muito bem compostas, são engravidadas por uma paisagem sonora quase onipresente, que inclui vozes, gritos, aves, insetos, latidos e sobretudo o vento. Segundo os Ayoreo, de uma respiração nasceu o vento, do vento nasceu um canto e desse canto nasceram os habitantes da Natureza.

O cinema dessa autora paraguaia exige de nós um profundo recondicionamento de exigências e expectativas. Não apenas por ser um slow cinema, mas por abandonar quase totalmente uma diegese “branca” em troca de uma fabulação descentrada que flutua entre realidade e mito.

Depoimento exclusivo de Jordana Berg:

“Montar EAMI foi mergulhar no universo Paz Encina. Tivemos um encontro profissional, artístico e amoroso profundo. Nossos sensos de humor se juntaram e rimos e choramos juntas, às vezes tudo ao mesmo tempo. O processo de montagem de EAMI foi diferente de tudo o que já fiz. Montamos uma história visual, construímos um mundo sonoro e depois descobrimos juntas a história dessa menina, deusa, pássaro, mulher. Foi um processo muito intenso, onde vivemos, eu e Paz, uma sensação de risco permanente.

Tivemos um ponto de partida, a invasão dos brancos, mas não sabíamos aonde íamos chegar, nem mesmo se íamos chegar. O desejo era de oferecer uma viagem a outro mundo, uma viagem entre a dor e a magia. O título original era “La Memória del Monte”, sendo monte o Chaco paraguaio. Mas EAMI pareceu comprimir toda a vivência dessa tragédia por que os indígenas Ayoreos passaram. 

Como brasileira, e vivendo a época que estamos vivendo com as violações dos direitos indígenas, para mim foi como falar também do meu Brasil. A dor paraguaia da Paz era também a minha dor brasileira. 

A montagem desse filme foi atravessada pela pandemia, e parece que essa doença também invadia os fotogramas. Tudo era contaminado por essa sensação de estarmos numa era de caos. Uma era doente. Sem salvação. Foi difícil e intenso.”

>> EAMI está nos cinemas

 

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